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Eduardo Antunes - Advogado

DIREITOnews | Identificação criminal e o “fichamento” dos “favelados”


Um assunto que causou muito frisson nas redes sociais ao longo das últimas semanas foi o procedimento utilizados pelas Forças Armadas nas operações em comunidades do Rio de Janeiro, como fruto da Intervenção Federal decretada.

Como vem sendo comum na última década, a postura dos soldados dividiu opiniões: uns apoiaram, dizendo que a violência não pode ser combatida com candura e que estamos vivendo um verdadeiro quadro de guerra urbana e, por isso, as medidas devem ser proporcionalmente drásticas. Outros, criticaram com veemência as abordagens a moradores das localidades pobres, onde, em tese, haveria “algo a se enfrentar”. Mais especificamente, vamos falar sobre a identificação criminal das pessoas interceptadas e da legalidade do ato.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, LVIII, diz que LVIII “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”. Assim, como já debatido na coluna publicada em 01/01/2018, esse direito fundamental previsto na Constituição é uma norma de eficácia contida, ou seja, implementa um direito que pode ser restringido através de lei.

Ocorre que essa lei demorou bastante para surgir, fazendo-nos esquecer de que, de fato, o civilmente identificado poderia, um dia, ser criminalmente identificado. Foi quando se editou a Lei nº 12.037/2009, prevendo as hipóteses em que seria possível tal identificação do cidadão.

O art. 3º da mencionada lei elenca quando a autoridade poderá realizar a identificação criminal do indivíduo, não obstante a identificação civil. Assim, quando (1) o documento apresentado contar com rasura ou tiver indício de falsificação; (2) o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado; (3) o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si; (4) a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa; (5) constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; (6) o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais, o cidadão poderá ter sua identificação criminal exigida.

A identificação será feita através de processo datiloscópico (colher as impressões digitais) e fotográfico, mas também poderá haver a coleta de material biológico, a fim de colher dados genéticos do indivíduo. Contudo, pela invasividade da medida, essa coleta só poderá ocorrer por decisão judicial fundamentada.

Vale dizer que a possibilidade de se formar perfil genético foi inserida pela Lei nº 12.654/2012 que alterou a Lei nº 12.037/2009 e também a Lei nº 7.201/84 (Lei de Execuções Penais), estatuindo a obrigatoriedade de extração do DNA de condenados por crimes dolosos com violência ou grave ameaça à pessoa e por crimes hediondos.

Evidentemente, o procedimento de identificação criminal deve respeitar, sobretudo, a dignidade da pessoa humana, princípio basilar da ordem jurídica (art. 1º, III da Constituição Federal) e não poderá violar a intimidade da pessoa (art. 5º, X da Constituição Federal), eis que a lei federal se submete aos ditames da Carta Constitucional.

Outro ponto de extrema relevância é que a identificação criminal só poderá ser feita no escopo de um procedimento administrativo ou judicial, quando o indivíduo for preso em flagrante ou for investigado/indiciado/processado. Não se pode fazer a identificação criminal que qualquer transeunte. A dicção do art. 3º, parágrafo único, nos parece bem clara.

E parece ser exatamente esse o ponto nodal do debate: a forma com que as abordagens vêm sendo realizadas, sob a justificativa de assegurar a lei e a ordem.

Pelo que vem sendo noticiado, os agentes militares têm “fichado” pessoas, através de fotografias, sem que haja qualquer suspeita de cometimento de ilícito penal e mesmo quando o morador dessas áreas carentes se identifica civilmente, de maneira adequada, clara e precisa, donde surge clara arbitrariedade e afronta às liberdades individuais.

Fica sempre o questionamento: será que a mesma operação seria realizada numa madrugada agitada da Zona Sul, em que jovens da classe média alta comercializam drogas sintéticas livremente? Acredito que não. O “Direito Penal do inimigo”, nomenclatura criada pelo jurista alemão Günther Jakobs, é aquele em que se elegem determinados setores da sociedade para aplicar a lei com maior rigor e vem sendo utilizado em larga escala no Brasil. É, de fato, um câncer importado que se difunde com enorme facilidade em um país com abismos sociais de proporções sem igual.

A Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública se manifestaram de forma pública e veemente contra as medidas de exceção que estão sendo tomadas, ao arrepio da lei. Pela seriedade e nobreza destas instituições e pelo absurdo das operações, engrosso o coro em desfavor dos militares, no caso em debate.

A violência urbana é um desastre que deve ser combatido em suas origens, como a falta de acesso à educação, emprego, saúde, saneamento básico etc. Realizar a “caça aos pobres” só irá criar um Apartheid redivivo, do qual teremos vergonha num futuro não muito distante.

Dúvidas e sugestões? Escreva para mim através do meu e-mail (eduardolmantunes@gmail.com).

Eduardo Antunes é advogado e professor. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho, pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho e pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes.

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